Quem conhece a pobreza dos barrios de Caracas sente um violento contraste ao passar em Altamira pelas mansões protegidas por seguranças privados e por redes electrificadas. Ironicamente, é aqui que se encontra a embaixada do país mais pobre da América do Sul. Mas não está só. Pelas paredes da avenida, surgem dezenas de pichagens de solidariedade com a Bolívia e com Evo Morales. E no muro da Embaixada destaca-se um mural com as várias etnias de mãos dadas.
Jorge Alvarado Ribas é o embaixador da Bolívia. Foi membro da Juventude Comunista. Estudou na União Soviética e é engenheiro geólogo. Envolveu-se no MAS, foi um dos protagonistas da guerra da água e depois assumiu a direcção da Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB). Para além disso, foi deputado nacional e candidato à presidência do departamento de Cochabamba. Sempre cordial, acedeu sem qualquer reserva a ser entrevistado pela Rádio Moscovo. Perguntando-lhe sobre como vive a nova situação boliviana, Jorge Alvarado sorri. Para ele, não há melhor momento na sua vida. Sente-se completo por viver este processo e por poder contribuir para uma nova Bolívia.
Rádio Moscovo - Gostaria de compreender por que motivo durante tanto tempo uma minoria branca dominou a política boliviana e como foi isso possível quando 80 por cento da população é indígena?
Embaixador Jorge Alvarado Ribas - Libertamo-nos do jugo espanhol em 1825. O nosso primeiro presidente foi o Libertador Simón Bolívar, que esteve cerca de seis meses no cargo. Depois, deixou-o ao Marechal António José de Sucre e este esteve no governo à volta de dois anos e três meses. E deixa o governo, justamente pelo desejo das oligarquias bolivianas de tomar o governo. Na prática, o Marechal foi expulso da Bolívia e do governo pelas oligarquias.
As medidas que estava tomando, com o Libertador Simón Bolívar, eram, fundamentalmente, para favorecer os indígenas da Bolívia. Por exemplo, os primeiros decretos do Libertador foram a favor dos povos indígenas. Um deles promovia a distribuição da terra aos indígenas. Estabelecia que se devia distribuir terras a todos “sem que fique um só indígena sem terra” e estabelecia uma extensão determinada de terra a distribuir para as zonas onde havia água para a rega e o dobro da extensão para onde não havia água. Contudo, o mais importante desse decreto, que não podia ficar um único indigena sem terra, nunca foi cumprido.
Outro decreto importante daquele tempo é o que estabelece que a todos os trabalhadores do campo e da cidade se deve pagar em moeda pelo seu trabalho e não em espécie. E porque emitiu esse decreto? Porque os latifundiários escravizavam os indígenas. Os donos das terras também eram donos de vidas. E esse estado de escravidão tinha a ver com o pagamento do o trabalho em espécie e não em dinheiro. Esse decreto tão pouco se cumpriu. Inclusive, essas condições existem agora na Bolívia e foram denunciadas pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas há um par de meses. Na zona Oriental da Bolívia, principalmente no Chaco, mantêm os indígenas em condições de escravidão e uma das formas de os manter assim é através do pagamento em espécie. Como fazem os latifundiários? Pelo trabalho do indígena pagam com roupa e com comida que o indígena vai buscar ao armazém do dono da terra. Acaba por ficar endividado de forma permanente, nunca poderá pagar essa dívida e o patrão tem-no subjugado na sua propriedade.
Desde a época em que os oligarcas e os latifundiários expulsaram Sucre, estes dirigem o Estado porque quem tem o poder económico tem o poder político. As minas, as terras, os meios de produção estão nas mãos destas oligarquias e elas tiveram o controlo da vida política em toda a história republicana.
JAR - Um dos factores foi a imposição do modelo económico neoliberal, através do qual se entregaram os nossos recursos naturais, as nossas empresas estratégicas a empresas multinacionais e através do qual se promoveu a mentira de que com este modelo económico iamos viver melhor e ter grandes investimentos de capital. Mas o resultado foi o inverso. As empresas multinacionais não trouxeram tanto dinheiro como as empresas do Estado. Venderam os hidrocarburos, a electricidade, as telecomunicações, as linhas férreas, a companhia aérea e até a distribuição de água. Para dar um exemplo, na área dos hidrocarburos, antes da sua entrega às multinacionais havia a companhia estatal Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e entre 1992 e 1996, que é quando se a privatiza, os lucros que dava ao Estado era de aproximadamente 450 milhões de dólares anuais. Depois da privatização, as empresas multinacionais começam a dar 80 milhões, 100 milhões e o máximo que deram ao Estado foram 250 milhões de dólares. Quase metade do que dava quando a empresa era do Estado. No ano 2004, aprovámos uma nova lei de hidrocarburos através de uma luta que travaram os deputados do MAS. Eramos uma minoria mas conseguimos impor a mudança na lei. A partir daí, 50 por cento para o Estado e 50 por cento para as multinacionais. Com a lei anterior o Estado recebia 18 por cento dos lucros e os privados 82 por cento. Nesse momento, ainda não tinhamos chegado ao governo e o Estado passou receber 650 milhões de dólares. Em 2006, com Evo Morales no governo, faz-se a nacionalização dos hidrocarburos e os lucros chegam aos 1200 milhões de dólares.
O inicio deste movimento deu-se no ano 2000 com a guerra da água. Havia movimentos anteriores mas não eram tão fortes. Inclusive, os cocaleros, cujo líder era Evo, travaram várias lutas mas não tinham uma repercussão tão grande como teve a guerra da água em Abril de 2000 em Cochabamba, onde pela primeira vez na Bolívia se ataca o modelo económico neoliberal expulsando a empresa multinacional e se recupera a gestão da água para o Estado boliviano, para o município neste caso. Em 2003, dá-se a guerra do gás e expulsa-se Sanchez de Losada [o então presidente da Bolívia]. Esse movimento foi de carácter nacional porque o da água era regional, embora com repercussão nacional e mundial. Com a guerra do gás, prosseguem os movimentos reivindicativos e, depois da expulsão do governo, o vice-presidente assume a presidência. Com o seu derrube, entra um governo transitório dirigido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça com a única finalidade de organizar as eleições. Que vencemos e que nos levaram ao governo.
RM - Que influência teve o processo bolivariano na Venezuela sobre estas mudanças na Bolívia?
JAR - Bem, a Venezuela estava num processo de mudanças, um processo de libertação em relação aos Estados Unidos e de recuperação dos seus recursos naturais e das suas empresas. Ou seja, um rompimento com o modelo económico neoliberal. Isso serviu-nos de exemplo mas vivemos o nosso próprio processo com as nossas proprias condições. Tinhamos a Venezuela como um exemplo mas não foi o factor determinante para que na Bolívia se produzissem mudanças. Por exemplo, a guerra da água que aconteceu porque a empresa que a geria, apenas dois meses depois da privatização, aumentou as taxas de uma forma abrupta. Cometeu o erro de aumentar a água em mais de 1200 por cento. Esse foi um factor determinante, um factor nosso. E essa particularidade nossa provocou o crescimento dos movimentos de oposição.
RM - Até que ponto é progressista a Constituição proposta para referendo em relação à anterior? Há uma refundação da República?
JAR - Sem dúvida. O objectivo principal da nova Constituição política do Estado é precisamente a refundação da Bolívia. Não se pode dar a refundação se não temos um instrumento, uma base legal que no-lo permita. E porque falamos de refundação e de uma nova Constituição? Não de uma simples reforma da Constituição como aconteceu 20 vezes à actual Constituição? Falamos de uma nova Constituição porque nessas 20 reformas nunca participaram as grandes maiorias da população boliviana que são os indígenas e os camponeses.
RM - E em que aspectos a Constituição se revela como progressista?
JAR - Dão-se mais direitos aos povos indígenas e aos camponeses. Reconhecem-se-lhes os direitos de cidadania. Reconhece-se a plurinacionalidade. Reconhece-se a pluricultura. Reconhece-se a autonomia das comunidades indígenas. São direitos que se estão a devolver aos povos indígenas que já os tinham antes da invasão da América pelos espanhóis. O sistema de vida desses povos, como a propriedade da terra, era comunitária. E agora está a devolver-se-lhes esses direitos.
RM - Acha que com esta nova Constituição se vai conseguir diminuir o poder das elites sobre os recursos naturais e a terra?
JAR - Pelo menos o que se pretende é limitar. A Constituição não tem carácter retroactivo para quem já possui terra. Mas há uma particularidade. Toda essa terra que os proprietários têm no caso de estar a cumprir uma função social, ou seja, se está a ser trabalhada e a produzir, será mantida. Se não têm estas caracteristicas são terras ociosas e o estado vai recupera-las fazendo uma nova distribuição da terra. Isso é importante. Não é que se lhes vão tirar as terras se as estão a trabalhar. A nova Constituição é clara e estabelece que a terra tem que ter uma função. Para os novos proprietários, por exemplo, se tu queres comprar terras, a extensão será definida pelo referendo. Uma das perguntas será qual o tamanho máximo da terra que devia ter um cidadao. Não houve um consenso na Constituinte e por isso, nas respostas possíveis, estão os cinco mil ou os dez mil hectáres. Portanto, o povo que é soberano vai decidir a extensão máxima.
RM - E o governo faz campanha por alguma das respostas?
JAR - Não, o governo nesse aspecto não está a dar nenhuma directriz. Queremos que haja liberdade entre o povo para o definir e vamos aceitar qualquer que seja a sua decisão.
RM - Vai ser possível levar esta nova Constituição à prática com a oposição dos sectores conservadores?
JAR - Sim, sem dúvida. Esta é uma decisão do povo. O governo vai po-la em prática mandatado pelo povo e em caso de oposição serão as organizações sociais que se imporão para pôr em prática a Constituição.
Entrevista conduzida por Bruno Carvalho
2 comentários:
Epá ganda cena! Mesmo em cima do acontecimento! Parabéns!
Boa entrevista.
Rádio Moscovo on the move!
Enviar um comentário