
Imagem aérea do bairro 23 de Enero
Nove de Outubro de 1973. Há seis anos, Ernesto 'Che' Guevara cuspia na cara do seu carrasco e gritava: "Dispara que vais matar um homem!". Mas os canos das metralhadoras do imperialismo não tiveram tempo de arrefecer. Há menos de um mês, o sangue de Salvador Allende arrastou consigo o sangue de milhares de chilenos. Calou-se a voz de Victor Jara e a pena de Pablo Neruda.
Um grupo de jovens decide, pela primeira vez, assinalar a morte de 'Che' Guevara. Fazem parte da J-23. Esta é a frente armada que opera no bairro 23 de Enero, zona subversiva de Caracas. Reúnem e tomam a decisão. Há que relembrar o guerrilheiro argentino através de uma acção espectacular. Esta noite, dos telhados de todos os blocos, serão lançados centenas de foguetes.
Um pequeno grupo comanda a operação. Serão eles a dar o sinal. Juan prepara o foguete e espera. É meia-noite. Pisca o olho aos camaradas e em vez de o lançar ao céu aponta-o à janela do apartamento do bufo. Com uma pontaria irrepreensível, o foguete entra na habitação e rebenta na sala. De imediato, centenas de explosões interrompem o silêncio nocturno. A esposa do bufo corre para a rua, aos gritos e em cuecas.
Nove de Outubro de 1979. Há seis anos que todo o 23 de Enero relembra a morte de 'Che Guevara'. Mas mais do que isso, a luta contra o capitalismo endureceu. No bairro, a J-23 deu lugar às Milícias Populares. Centenas de jovens da capital venezuelana aderem à guerrilha urbana. Há confrontos todas as semanas. A polícia e o exército ocupam os blocos e fazem buscas casa-a-casa. Há que exterminar toda a dissidência com a ditadura puntufijista. O assédio repressivo utiliza o assassinato e a tortura como ferramentas de intimidação.
Apesar das dificuldades, as Milícias Populares decidem organizar o tradicional lançamento de foguetes. Se a polícia e os militares ocupam os telhados, os guerrilheiros descem às ruas. Se a polícia e os militares ocupam as ruas, os guerrilheiros sobem aos telhados. Os jovens combatentes, apesar da inferioridade material, jogam em casa. Conhecem o bairro como as palmas das mãos e têm o apoio da população.
Mas esta noite vão alterar as regras do jogo. Não só subirão aos telhados, não só ocuparão as ruas, como também cercarão a esquadra dos torturadores. Põem os passa-montanhas. Empunham as pistolas e as pistolas-metralhadoras. Outros sobem aos telhados, outros guardam as esquinas. À mesma hora, ouve-se o sinal. Por todo o lado, explodem foguetes. Ouve-se bater tampas de panelas. Ao fundo, um megafone amplifica a voz de um combatente que lê um comunicado. E as rajadas assaltam, sem descanso, o módulo policial.
Nove de Setembro de 2009. Já não há módulo policial. Agora, no seu lugar, vive a Casa de Encuentro Freddy Parra. É ali que se encontra a rádio alternativa Al Son del 23. Também é ali que se ensina a população. Onde antes se torturava gente, há agora um info-centro onde se pode aceder à internet. Ao lado, um mercado que vende comida a preços sociais. Também muito perto, um centro de saúde onde duas médicas cubanas recebem a população. Já não há repressão. Quem vigia o bairro são os próprios habitantes que se organizam e mobilizam através de assembleias.
A Coordinadora Simón Bolívar, em conjunto com outros movimentos, decidiu realizar uma manifestação no bairro. Nela, não só se recorda 'Che' Guevara como se denuncia o imperialismo norte-americano e as sete bases que se vão concentrar na Colômbia. Centenas de pessoas percorrem o 23 de Enero reclamando o fim da interferência dos Estados Unidos na América Latina.
Durante a noite, juntaram-se nos telhados dos blocos do 23 de Enero. Uma vez mais, como em 1973, a noite de Caracas não se calou. Mas, desta vez, só houve a alegria de um povo que se levanta pelo futuro. Ninguém tapou o rosto. Ninguém fugiu das balas perdidas. Ninguém se escondeu.