
O Sérgio travou ontem o seu último combate. E caiu. Mas apesar de ter caído, venceu. Porque a vitória não é só dos que derrotam a morte. Na maioria das vezes, a vitória é de quem derrota a indiferença. Dizia Antonio Gramsci que "a indiferença é abulia, é parasitismo, é cobardia, não é vida. (...) O que acontece não acontece tanto porque alguns o queiram, mas porque as massas de homens abdicam da sua vontade, deixam de fazer, deixam enrolar os nós que, depois, só a espada poderá cortar; deixam promulgar leis que, depois, só a revolta fará anular; deixam subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar". O Sérgio venceu.
Quando partiu de Espinho, na década de 50, já levava a consciência política de quem conheceu de perto a realidade da classe trabalhadora. Como jornalista, teve a oportunidade de contactar com os pescadores e com as varinas da zona. E nunca esqueceu os outros heróis de um tempo em que a morte tampouco derrotava. António Ferreira Soares - conhecido como doutor Prata - foi um deles. O assassinato do "médico dos pobres" por parte da polícia fascista marcou várias gerações de antifascistas espinhenses.
Longe da pátria e do fascismo português, o Sérgio esteve sempre na linha-da-frente. Participou no movimento cívico-militar que derrubou o ditador Marcos Pérez Jiménez. Ajudou a fundar a Junta Patriótica Portuguesa. Coordenou o estágio militar dos membros do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação que realizaram o primeiro sequestro político de um navio contra o fascismo de Salazar e de Franco. E chegou a ser detido numa manifestação contra uma outra de emigrantes portugueses solidários com o regime fascista.
Desde cedo, esteve ao lado da revolução cubana. Que provocou uma tempestade em todo o mundo e, principalmente, na América Latina. No ano em que Fidel Castro entrou triunfante em Havana, juntou-se a Rúben Moreira e decidiram, com humor, atacar a recepção ao então ministro português dos Negócios Estrangeiros Paulo Cunha com bombinhas de mau cheiro.
Três anos depois, a 26 de Julho de 1961, no ano em que se declara o carácter socialista daquela revolução, Sérgio escreve: "Dia 26 pela tarde.../chove./fulgura o sol de cuba/e ilumina o mundo". Esse poema, intitulado como "sol de cuba", figura no seu livro "Vem como a gente" dedicado a Livia Gouverner. A jovem comunista venezuelana havia sido assassinada por fascistas cubanos numa concentração de estudantes universitários em solidariedade com a revolução cubana.
É assim Sérgio. Sempre solidário com a luta dos povos. Sempre em actividade contra o fascismo português. Mantém contactos com o Partido Comunista da Venezuela e com guerrilheiros. À chegada a Caracas, Amália Rodrigues e Simone de Oliveira revelam-lhe a solidariedade com os que lutam contra Salazar. Poucos meses antes de cair assassinado, Humberto Delgado convida-o para ser seu secretário. Coordena um programa de rádio, escreve em revistas, dá conferências, publica livros de poesia. Não pára.
Nos últimos anos, dedicou a sua vida à Livraria Divulgación que abrira em 1980. Ali, entre o mar de livros, Sérgio sabia escolher o livro adequado para cada pedido. Citava passagens de memória e estimulava o prazer da leitura. Não raramente, entravam universitários, professores e políticos à procura de uma determinada obra. Também ali se recusou a fechar a loja quando a oposição ao processo bolivariano decretou o 'paro petrolero' e perseguiu aqueles que não colaboravam. De resto, as paredes de vidro da livraria estavam forradas com cartazes políticos que denunciavam o carácter resistente do proprietário.
Na memória de todos os que o conheceram ficará a imagem de um ser humano extraordinário. Um ser humano que em tempo algum se deixou levar pela indiferença. Nos últimos anos, passou grandes dificuldades financeiras, sem nunca ter recebido qualquer reconhecimento ou apoio do Estado português. Ainda assim, esteve sempre lá, do lado certo da barricada. E todos nós ganhámos ao conhece-lo. Ao conhecer a limpidez de um homem cujos princípios éticos eram a antítese do mundo em que vivemos. Ele, como muitos outros resistentes antifascistas, é o mundo em que queremos viver.
Quem pode, afinal, dizer que o Sérgio perdeu?