quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Memórias do Curdistão

Mais de uma dúzia de jovens juntaram-se para nos receber. O extraordinário, parece, é o facto de termos afirmado ser comunistas e, em determinado momento, termos participado em campanhas de solidariedade com Abdullah Ocalan. Fizemo-lo num ambiente de confidência a três amigos antes da nossa viagem à Síria. E com isso fizeram-nos prometer voltar. Não podiamos partir para a Europa sem desfrutar de um jantar e de um baile curdo.

O prometido é devido. E naquela tarde abafada de Agosto, largámos as mochilas no Yunus Hotel e esperamo-los na rua. Os nossos três amigos chegaram com o batalhão de gente desconhecida. Com uma alegria contagiante levaram-nos pelas ruas de Gaziantep. Metade deles não sabia uma palavra de inglês. E nós pouco sabíamos de curdo ou de turco.

Primeiro, levaram-nos à casa de chá arménia. Provavelmente, a visita não teve qualquer significado político mas a verdade é que havíamos conhecido na Síria vários arménios que apontavam o dedo acusador à Turquia pelo genocídio contra o seu povo. Aquela visita terá sido casual ou terá sido propositada? Nunca saberemos.

Mas depois de nos conduzirem pelo mercado levaram-nos a casa. À porta, recebe-nos a mãe. Não sabe quem somos mas ainda assim abraça-nos. Somos amigos das suas filhas e isso basta-lhe. Convida-nos a descalçar e puxa-nos para uma sala acolhedora. Senta-se num cadeirão e observa-nos sorridente. Não participa na conversa porque não sabe falar outra língua que não o curdo e o turco. São as filhas quem lhe vai explicando o tema.

Saltam-lhe lágrimas quando lhe dizem que falamos sobre o problema curdo. Só nesta família, houve quem tivesse que fugir para a Alemanha e houve quem tivesse optado por pegar em armas, ao lado do PKK. Algures, lutavam nas montanhas pela dignidade do seu povo. Mas não deixavam de ser sangue do seu sangue e isso fazia-a sofrer. Na guerrilha, o combate é de vida ou de morte.

Entretanto, os jovens estendem uma toalha no chão da sala. Há pão, salada, sopa de grão e pimentos recheados com carne e arroz. Nós, cumprindo as costumeiras regras, trouxemos a típica baklava para a sobremesa. Querem saber o que se come nos nossos países. Falo-lhes do famoso peixe que vive no Norte do Atlântico e que é o protagonista da gastronomia portuguesa. Sentamo-nos de pernas cruzadas e num ambiente jovial, enquanto se come, conversa-se, discute-se e brinca-se.

Não sei quando começaram mas num determinado momento todos dançavam. Também nós. Fui arrastado por uma rapariga que me obrigou a acompanhar os passos de forma disciplinada. Demos as mãos, fizemos um circulo e deixamo-nos levar pela guitarra curda de um dos jovens. Eles cantavam em coro enquanto eu lutava para manter os passos no ritmo acertado.

Mas a noite quase que acabava de forma trágica. Levados pelo entusiasmo, dedicamo-nos a entoar canções revolucionárias. Houve tempo para o Hino de Caxias e para a Bella Ciao. A mãe, sempre alerta, mandou-nos baixar o tom quando cantámos a Internacional. Alguém nos podia denunciar. Mas era um momento solene. Todos eles, em curdo ou em turco, e nós, em português e em italiano, cerrámos os punhos.

Não sei como estarão. Não sei se estarão a preparar o próximo Newroz. Não sei se algum terá sido morto, preso ou partido para o exílio. Não sei se a mãe teve de derramar mais lágrimas. Tudo indica que sim. A Turquia lançou uma ofensiva sobre os guerrilheiros curdos. O próprio PKK - que depois da autonomia curda no Norte do Iraque havia tolerado, de forma vergonhosa, a intervenção norte-americana - encontra-se encurralado. Mas sempre que penso naquela noite recordo-me da voz de Manuel Freire: "Não há machado que corte a raiz ao pensamento".

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom o texto. O Curdistão e a sua situação são muitas vezes esquecidos pelos vários sectores anti-imperialistas mas na verdade trata-se de um caso que nos merece a máxima atenção (um exemplo análogo é o Sahara Ocidental).

Quanto ao "significado político" da visita a um estabelecimento armeno, e mesmo não estando lá, acredito que tenha sido mais vasto do que pensas. Repara que a Arménia é ainda uma nação subjugada. A Arménia actual é apenas a antiga Arménia Soviética que é apenasuma parte do território total reclamado pelo povo Armeno, sendo que a parte anexada pela Turquia ainda continua anexada, tal como a região de Nagorno-Karabakh, actualmente integrante do Azerbaijão.

De qualquer maneira, da próxima vez que fizeres uma viagem destas a ver se vou também.

Saúde

Anónimo disse...

O azar dos curdos é precisamente não estar em disputas nem com americanos nem com israelitas (leia-se judeus). Assim, ninguém quer saber deles. Tivessem eles às turras com os americanos (como os iraquianos, iranianos, venezuelanos ou cubanos) ou com os israelitas (como os palestinianos), os "activistas da paz" fariam um banzé do caraças. Como esta situação não envolve nem americanos nem israelitas... ninguém se lembra. E como esta há muitas. Tomara os curdos terem um centésimo da atenção que os palestinianos têm.