segunda-feira, 1 de junho de 2009

À memória de uma jovem pastora e contrabandista


Algures, nos confins de Portugal, existe uma região chamada Trás-os-Montes. Poucos de nós conhecemos esta zona cravada entre vales, serras e rios mas, ainda nos confins, desta terra de confins, existe uma aldeia isolada junto à Serra do Larouco. Santo André era, até há bem pouco tempo, baseada no trabalho comunitário. A população dividia as tarefas da comunidade, uns coziam o pão no forno comunitário, outros pastavam as ovelhas e as cabras de várias famílias. As encostas da montanha, uma das mais altas de Portugal, eram o palco do pastoreio de Santo André e das aldeias vizinhas. A Ana passou a infância e a adolescência a fazer o que mais a maravilhava: pastar a "rês", como os transmontanos e ela, com 83 anos, chamam. Sabia de cor o nome de cada animal e partia para as encostas frias do Larouco, onde no Inverno neva intensamente.

Para quem não conheça Santo André, actualmente, tem 271 habitantes. Segundo informações da Câmara Municipal de Montalegre "tem uma Igreja Paroquial do século XVIII, como a maioria das deste concelho, com um cruzeiro em frente, uma Capela privada, junto ao forno do povo, que é dos mais importantes e bem concebidos do mundo. A cidade de Grou é um castro na Raia, a caminho de Gironda [aldeia galega], ainda com grandes pedaços de muralha." É privilegiada pela fralda nascente do Larouco com toda a sua fertilidade e com as baixas encostas onde a vinha já cresce e toda a fruta amadura. Rebanhos e vezeiras fazem de Santo André terra de carne mimosa."

É, portanto, uma daquelas aldeias junto à fronteira com a Galiza. Basta atravessar-se o Larouco e estamos em solo galego. Compreende-se por isso a histórica relação entre galegos e transmontanos, a confluência entre dois povos esquecidos. A família da Ana dedicava-se ao pastoreio e à agricultura de subsistência. Mas não só. O seu pai, o seu avô, o seu bisavô e, provavelmente, as gerações anteriores passaram o negócio de contrabando de pais para filhos. Quando falamos de contrabando falamos de produtos que rareavam na época como o tabaco, o café, o cacau, carne, chocolate, etc. Falamos de uma época de grande pobreza em que, muitas vezes, a castanha assumia um papel fundamental na alimentação. Falamos de uma época atravessada pela I Guerra Mundial e pela Guerra Civil espanhola.

Quando era pequeno maravilhavam-me as suas histórias. Contava-me como tinha medo dos lobos que apareciam quando estava sozinha com a rês. Do frio e dos nevões que caíam. De quando apareceram os "soldados da Guarda Republicana" e tiveram de esconder o produto do contrabando. De como era das melhores alunas a escrever e a fazer contas. E de como não fez o exame final da quarta classe porque a família não tinha dinheiro para lhe comprar um vestido. De como o seu pai teve de andar meses fugido, nos campos de centeio, dos soldados da Guarda Republicana por ter recusado ir para a linha-da-frente em França combater numa guerra que desconhecia. De como anos depois a aldeia ajudou a esconder combatentes fugidos da Guerra Civil espanhola.

Há poucas semanas, voltámos a conversar sobre o assunto. Explicou-me que era hábito generalizado na aldeia esconder galegos fugidos da Guerra Civil. Perguntei-lhe pelos vermelhos. Disse-me que nunca conhecera nenhum mas que eram conhecidos como "rojos". Gente má, explicou. Pelo menos era o que se lhes dizia. Mas que nunca vira nenhum, repete. Perguntei-lhe quem eram os galegos que escondiam mas não me soube responder. Apenas soube explicar que era gente boa, gente muito boa. "Do campo como nós". E falou-me de um rapaz sapateiro de que todos gostavam e que acabou por regressar. Parece que foi fuzilado.

É então que lhe explico que, com muita probabilidade, entre os muitos galegos que por ali passaram, alguns deles eram vermelhos. Que do outro lado da raia estavam assassinos a soldo de um homem como o Salazar. Que vermelhos ou "rojos" era o nome que se dava aos que combatiam o fascismo. E que tal nome se lhes era atribuído dada a sua condição de comunistas. Homens e mulheres que defendiam um mundo de paz e de justiça. "Mas como podia ser o sapateiro "rojo" se era boa pessoa?", perguntou.

Esta é uma pergunta mil vezes repetida quando se toma contacto com os comunistas. Ontem, um conhecido explicava-me que desde que começara a trabalhar em carpintaria sentia uma forte ligação ao trabalho que faz e aos seus colegas. De súbito, as ideias do Partido começaram a fazer sentido na sua cabeça. Tinha ganho consciência da exploração a que eram submetidos e da injustiça que tudo aquilo traduzia. Provavelmente, a mesma conclusão que surgiu na cabeça de um sapateiro galego há quase um século. Uma ideia que incita à organização e à acção. À luta e ao combate.

Também hoje, anos volvidos, a manipulação ideológica com base na mentira leva à pergunta: mas como pode ser vermelho se é boa pessoa? Provavelmente, já ninguém acredita que comemos criancinhas ou que matamos velhos com uma agulha atrás da orelha mas basta abrir as páginas de um ou dois jornais para compreendermos que o tempo do preconceito anticomunista não morreu. Está bem vivo e promete crescer na medida em que cresça a força dos comunistas. Porque eles sabem de que lado está a superioridade moral. Que não está, certamente, do lado de quem explora e de quem promove a injustiça social.

A Ana nunca o compreenderá. Também não terá a oportunidade de viver num mundo de paz e de progresso. Da adolescência dedicada ao pastoreio e ao contrabando foi obrigada a migrar para a cidade. Daquelas terras povoadas de bruxas, curandeiros e superstições partiu para a Amadora. Aos 15 anos, servia em casa de gente rica. Casou-se com um camponês que, como ela, migrou para se tornar operário. A sua história é a história desconhecida de milhares de portugueses. Uma história que terminou hoje aos 83 anos e que contribuiu muito para aquilo que sou.

Obrigado.

Nota: "Comunitarismo – É uma vivência tradicional do povo de barroso. Nas mais diversas situações se nota a entreajuda e o partilhar de tarefas. Cito como exemplos o funcionamento do forno público que é «aquecido» semanalmente por uma vizinha, a quem chamam «cantadeira». Esta dá «as vezes», para cozerem depois dela, as pessoas que assim o quiserem.
- O rebanho, em que cada vizinho guarda os animais durante um número de dias proporcional ao número de animais que possuiu.
- O regadio, em que a vez de regar vai passando de casa em casa sequencialmente começando a 15 de Junho e acabando a 15 de Setembro.


- As malhadas tradicionais de ajuda mútua, assim como o arranque das batatas, a vindima e a matança do porco.
- O arranjo dos caminhos agrícolas, a limpeza dos poços da aldeia, o apagar dos incêndios, tanto na aldeia como nos montes, eram actividades que revelavam uma grande união, sendo as pessoas avisadas através do toque do sino." [in site da Junta de Freguesia de Santo André]

9 comentários:

Bonnie disse...

Belo post

lp16 disse...

Excelente texto e vídeo mesmo.
Inspirador.

Pedro Bala disse...

A minha avó era uma pessoa simples e desconhecida. Genuína.

Até sempre.

filipe disse...

Uma região do nosso Portugal muito bonita. Num inverno, há mais de 30 anos atrás, passei alguns dias maravilhosos em Vilar, em casa de familiares de uma amiga e camarada, de frente para as encostas do Larouco. A natureza, o gado, as gentes de duro trabalho, os ponchos para nos abrigarmos da chuva, a braseira aos pés no chão da casa, o fumo curando os enchidos pendurados das vigas do tecto, o banco com o balcão que da parede descia sobre as cabeças e fazia de mesa, a cordialidade hospitaleira sem limites... Que saudades!
Um abraço.

Boots disse...

Muito bom camarada, nesta altura apetecia-me levantar o copo bem alto e brindar contigo a toda essa gente que é afinal a gente simples, que criou as cidades operárias e os bairros populares, gente que como a tua avó deixaram a fome e a exploração, pela exploração e por um bocadinho menos de fome, obrigadas pelo vazio do estômago a deixarem o interior de Portugal cada vez mais vazio e triste.

Abraço

João Pedro Lobato disse...

Rojos são maus e o galegos são bons… e no fundo são todos o mesmo.

Basta mudar o significado (a palavra que dá sentido) para a nossa representação sobre o significante (o objecto) mudar... e assim ludibriar-nos. Mas o objecto, no fundo, mantêm-se o mesmo, não muda, seja ele bom ou mau, fabuloso ou mesquinho. Tudo isso faz parte do jogo dos desenganos e da ilusão, da propaganda e da contra-informação.

Tanto tempo se passou, desde que a tua avó foi uma menina, e ainda há quem caia na ilusão dos significados adulterados.

"Alguém" ainda teima em mandar-nos petas à cara, na ânsia de que a nossa angelical ingenuidade faça com que ponhamos a pata na argola. O pior, é que continuamos a cair na armadilha.

Ora vejamos um exemplo:

Socialismo (Significado) = Sistema sociopolítico no qual as desigualdades sociais tendem a ser drasticamente reduzidas, uma vez que a produção deve ser equitativamente distribuída (Significante).

Sendo assim, porque raio o PS ainda teima em usar o significado “Socialista” na sua designação, quando o seu significante (aquilo que faz) é totalmente diferente. Não tarda, quando um marido der uma tareia na mulher, pode dar a isso o significado de “amor”. Já agora…

Chega de aldrabices e ilusões!


ps: excelente post Bruno!

Alvaro disse...

Bonita História, mas essa não vêm nos livros no ensino. Obrigado pela partilha desse conhecimento.

Conheço uma história de outra região do país bem mais trágica mas também com um significado de origem de classe acentuado.

O Boots escreve bem, foi a nossa gente, simples humilde que criaram os bairros populares e cidades operárias, vindas de todas as partes do país para as grandes cidades na esperança de uma vida melhor (na altura menos fome, mas a exploração continuava).

Não é por acaso que queremos um país diferente numa sociedade diferente.

Anónimo disse...

Um abraço.
R.

Francisco Pedro disse...

Obrigado pela partilha :)
Forte abraco ca de longe!